3 de maio de 2012

Teologia de Leigos - O Cânon da Bíblia

O CÂNON DA BÍBLIA
(OBS. Esta Apostila foi inicialmente elaborada pelo saudoso biblista Dom Elizeu de Morais Pimentel, falecido em 2003, e revista por Frei Ildo Perondi)
O termo grego kânon (kanon) vem de “cana”, um pedaço de “caniço” usado para medir (Ez 40,3.5). Num sentido derivado, passou a significar “medida”, uma “regra” ou “ norma” (Gl 6,16). Assumiu depois o significado de “relação”, “enumeração”, “lista dos livros” do Antigo e do Novo Testamento que a Igreja Católica considera como inspirados e que servem de “norma”, de “medida” da fé, isto é, de “base e critério” para o ministério da pregação e do ensino no caminho da justiça (cf. 2Tm 3,14-16).
Os Santos Padres usaram a palavra “cânon” com o sentido de “regra de fé”, e o cânon das Escrituras foi considerado como a regra escrita de fé. A idéia que finalmente prevaleceu foi a de uma determinada coleção de escritos que se constitui em uma regra de fé.
Por último, o cânon das Escrituras passou a significar aquilo que entendemos por ele hoje: a coleção de livros divinamente inspirados recebidos e reconhecidos pela Igreja como a infalível regra de fé e prática, em virtude de sua origem divina.
Podemos notar que a designação de “canônicas”, aplicada às Escrituras, pode ser tomada num sentido ativo: a Bíblia como a regra de fé e prática ou passivo: a Bíblia como oficialmente recebida pela Igreja. Embora todos os livros canônicos sejam inspirados e nenhum fora do cânon é considerado inspirado, as noções de canonicidade e inspiração não são as mesmas. Canonicidade significa que um livro inspirado, destinado à Igreja, foi recebido como tal por ela. Os livros são inspirados porque Deus é o seu autor, e são canônicos porque a Igreja os reconheceu e os admitiu como inspirados. A Igreja, por meio da revelação, pode reconhecer o fato sobrenatural da inspiração. Esse reconhecimento pela Igreja não acrescenta nada à inspiração de um livro, mas reveste o mesmo de uma autoridade absoluta do ponto de vista da fé e, ao mesmo tempo, é o sinal e garantia da inspiração.

DIVISÃO DA BÍBLIA
a) A divisão cristã da Bíblia inclui o Novo Testamento, que conta com 27 livros, e o Antigo Testamento, que conta com 46 livros. Nos dois Testamentos os livros podem ser distribuídos em três grupos da seguinte maneira:
ANTIGO TESTAMENTO (46)        NOVO TESTAMENTO (27)
21 Livros Históricos                           5 Livros Históricos: Evangelhos e Atos
7 Livros Didáticos                             21 Livros Didáticos: Epístolas
8 Livros Proféticos                             1 Livro Profético: Apocalipse
A divisão cristã da Bíblia, AT e NT, em três grupos de livros (históricos, didáticos e proféticos) parte de uma visão global que situa a Palavra de Deus na vida dos fiéis, influenciando-a em todas as suas dimensões: passado (livros históricos), presente (livros didáticos) e futuro (livros proféticos).
b) O Antigo Testamento usado pelos judeus e protestantes é diferente do nosso não somente pelo número de livros. Na Bíblia Hebraica há também diferenças na maneira de dividir os livros em grupos.
DIVISÃO HEBRAICA DIVISÃO CRISTÃ
Torah = Lei (5): corresponde ao nosso Pentateuco (Gn, Ex, Lv, Nm e Dt)
Livros Históricos (21): Gn, Ex, Lv, Nm, Dt, Js, Jz, Rt, 1-2Sm, 1-2Rs, 1-2Cr, Esd, Ne,Tb, Jt, Est, 1-2Mc
Nebi’im = Profetas (21)
a) Profetas anteriores: Js, Jz, 1-2Sm, 1-2Rs
b) Profetas posteriores: Is, Jr, Ez e os 12 Profetas Menores
Livros Sapienciais ou Didáticos (7): Jó, Sl, Pr, Ecl, Ct, Sb, Eclo
Ketubim = Escritos (13): Sl, Pr, Jó, Ct, Rt, Lm, Ecl, Est, Dn, Esd, Ne, 1-2Cr
Livros Proféticos (18):
a) Profetas maiores: Is, Jr, Lm, Br, Ez, Dn.
b) Profetas menores: Os, Jl, Am, Ab, Jn, Mq, Na, Hab, Sf, Ag, Zc, Ml
A divisão cristã do AT tem como critério os gêneros literários dos livros, enquanto a judaica segue a ordem cronológica ou do tempo em que cada livro supostamente foi escrito.

CÂNON HEBRAICO E CÂNON GREGO DO AT
Podemos ver que faltam alguns livros do AT na Bíblia Hebraica. Se pegarmos hoje uma Bíblia usada pelos protestantes, notaremos as mesmas faltas. Por que isso acontece?
Écomum ouvirmos que foi Martinho Lutero quem teria retirado esses livros da Bíblia. Não é verdade! Já dois séculos e meio antes de Jesus Cristo, existiam duas listas diferentes dos livros do AT considerados canônicos: uma em hebraico e outra em grego.
O AT em grego contém o cânon da Septuaginta ou Setenta (LXX) e era seguido pelos judeus que moravam fora da Palestina; o outro, chamado Bíblia Hebraica (BH), era usado pelos judeus da Palestina. Geralmente, se fala de um “cânon breve” (BH) e um “cânon curto” (LXX).
CANON BREVE – BÍBLIA HEBRAICA
LEI (Torah)
1. Gênesis (Bereshit: No princípio)
2. Êxodo (Shemôt: Nomes)
3. Levítico (Wayyqrá: E ele chamou)
4. Números (Bemidbar: No deserto)
5. Deuteronômio (Debarîm: Palavras)
PROFETAS (Nebi’im)
Profetas Anteriores
6. Josué
7. Juízes
8. 1 e 2 Samuel (2)
9. 1 e 2 Reis (2)
Profetas Posteriores:
10. Isaías
11. Jeremias
12. Ezequiel
13. Os Doze Profetas (12)
ESCRITOS (kethubim)
14. Salmos
15. Jó
16. Provérbios
17. Rute
18. Cântico dos Cânticos
19. Eclesiastes (Coélet)
20. Lamentações
21. Ester
22. Daniel
23. Esdras - Neemias (2)
24. Crônicas (2)
CÂNON GREGO DA LXX
LEGISLAÇÃO E HISTÓRIA POETAS E PROFETAS
1. Gênesis
2. Êxodo
3. Levítico
4. Números
5. Deuteronômio
6. Josué
7. Juízes
8. Rute
9. Quatro “livros dos Reinos”: I e II Samuel; III e IV Reis
10. Paralipômenos I e II = Crônicas
11. [ Esdras I ]
12. Esdras II = Esdras e Neemias
13. Ester (com partes próprias do grego)
14. Judite
15. Tobias
16. I e II Macabeus
17. [ III e IV Macabeus ]
18. Salmos
19. [Odes]
20. Provérbios de Salomão
21. Eclesiastes
22. Cântico dos Cânticos
23. Jó
24. Sabedoria
25. Eclesiástico (“Sabedoria de Sirac”)
26. [Salmos de Salomão]
27. Doze profetas menores
28. Isaías
29. Jeremias
30. Baruc ( = Baruc 1-5)
31. Lamentações
32. Carta de Jeremias ( = Baruc 6)
33. Ezequiel
34. Susana ( = Daniel 13)
35. Daniel 1-12 (3,24-90 é próprio do grego)
36. Bel e o Dragão (=Daniel 14)
Os católicos chamam os 39 livros da BH de livros Protocanônicos (pertencentes ao primeiro cânon) e os 7 livros contidos na LXX e aceitos pela Igreja Católica de livros deuterocanônicos (pertencentes ao segundo cânon, em itálico na lista).
FORMAÇÃO DO CÂNON
HISTÓRIA DO CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO
Depois do exílio na Babilônia, muitos hebreus viviam fora de Israel, exilados ou porque emigraram. Se falava o grego e os hebreus que viviam fora de Israel tinham dificuldade de ter acesso ao texto bíblico escrito em hebraico.
E por isso, em Alexandria no Egito, no século III antes de Cristo, alguns escribas hebreus decidiram traduzir a Bíblia para o grego.
A história conta que se reuniram em selas separadas 72 escribas vindos de Israel (6 de cada tribo) e em exatos 72 dias cada um fez uma cópia. Depois de concluídos viram que os textos eram absolutamente iguais. Porém, é fácil perceber que não foi bem assim.
A tradução para o grego foi feita por muitas mãos. Alguns conheciam bem o hebraico e também o grego. Alguns livros têm uma tradução péssima para o grego. Muitas vezes tiveram que explicar alguns termos, interpretar certas expressões, fazer o texto se tornar compreensível ao mundo grego. Esta tradução é chamada LXX (Setenta) ou Septuaginta.
Os hebreus que moravam em Israel não gostaram. Segundo eles, Deus só “falava” em hebraico.
Os hebreus que viviam fora de Israel gostaram, porque assim podiam ler, estudar e viver a Palavra de Deus e usar este texto na liturgia e nas celebrações.
No entanto, eles entenderam que alguns livros escritos fora de Israel faziam parte da história do povo de Deus e por isso também eram inspirados por Deus. Foi assim que também incluíram na Bíblia os livros: Eclesiástico, Sabedoria, Tobias, Judite, Baruc, 1 e 2 Macabeus e alguns trechos dos livros de Daniel e Ester e uma Carta de Jeremias.
Os judeus acharam isso um absurdo porque, segundo eles, Deus só se revelava em hebraico e ficaram com a sua Bíblia que ficou mais “pequena” e só em hebraico. Os judeus fora de Israel tinham então uma Bíblia mais “grande”, em grego.
No ano 87 dC., os judeus de Israel, no Concílio de Jamnia, definiram de uma vez por todas que para eles a verdadeira Bíblia Hebraica era esta “pequena”.
O NT cita cerca de 350 vezes o AT (os livros mais citados são Salmos, Isaías e Gênesis) e se percebe que pelo menos 300 vezes as citações são tiradas da versão grega (LXX).
Critérios de inspiração para os rabinos de Jâmnia:
Os rabinos do Sínodo de Jâmnia consideraram como inspirados e que, por isso, formam o cânon da Bíblia Hebraica, somente os livros:
a) antigos que tivessem sido escritos até Esdras e Neemias;
b) redigidos em língua sagrada, isto é, o hebraico;
c) originados e compostos na Palestina e não em terras estrangeiras;
d) que estivessem de acordo com a Lei de Moisés.
A Vulgata
Por volta do ano 400 o Papa Dâmaso pediu a São Jerônimo para traduzir a Bíblia para o latim, pois naquele tempo não se falava mais nem o hebraico e nem o grego, mas o latim. Jerônimo concordou e começou a trabalhar.
Mas havia um problema: Jerônimo não conhecia bem o hebraico. Procurou então um velho rabino judeu de Belém, para ter aula com ele. Devido às aulas, os dois acabaram ficando muito amigos. Trocavam idéias sobre a Bíblia, até que Jerônimo ficou influenciado pelo rabino e começou a pensar que a verdadeira Bíblia era aquela mais curta, aquela dos judeus. Jerônimo, porém, sabia que a Igreja não pensava como ele, então traduziu tudo, mas disse que os sete livros que não estavam na Bíblia hebraica eram “Deuterocanônicos”.
 “Dêutero” quer dizer segundo; “cânon” significa lista. São Livros da segunda lista. A opinião de Jerônimo tinha muito peso na Igreja. As divergências começaram de novo. Antes ninguém tinha dúvidas, mas depois que Jerônimo veio com esta lista de “deuterocanônicos”, a discussão voltou a ser forte e as discussões continuaram por muitos e muitos anos.
Com o passar dos séculos, os bispos resolveram pronunciar-se oficialmente. Fizeram isto numa Carta escrita durante o Concílio Ecumênico de Florença, no anos de 1430. Nesta Carta diziam que, para a Igreja Católica, faziam parte da Sagrada Escritura todos os Livros da lista comprida.
Tudo parecia em paz, quando o assunto voltou à tona por causa de Lutero. Tendo deixado, por protesto, a Igreja Católica, Lutero tinha começado a Igreja Protestante. A primeira preocupação dele foi traduzir a Bíblia do latim para o alemão. A Bíblia que Lutero traduziu, porém, foi a Bíblia pequena, aquela dos Hebreus. Com ela reabriu-se a discussão dentro da Igreja. Então, no Concílio de Trento (1545-1563), os Bispos definiram e encerraram a discussão. A Bíblia que a Igreja Católica aceita como inspirada por Deus é aquela comprida.
HISTÓRIA DO CÂNON DO NT

Critérios de canonicidade

Que critérios usou a Igreja para declarar canônicos certos livros e excluir outros? Buscaram-se elementos ao interno deste corpo de livros, bem como outros elementos de praxe eclesial.

Critérios internos

1. Verdade, ou ausência de erros na Escritura “... os livros da Escritura afirmam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus em vista de nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras” (DV 11).
2. Santidade e transcendência divinas presentes nas entrelinhas. “Na Sagrada Escritura, portanto, manifesta-se, resguardada sempre a verdade e santidade de Deus, a admirável “condescedência” da eterna Sabedoria, ...” (DV 13).
3. A admirável concordância entre os livros. “Deus, pois, inspirador e autor dos livros de ambos os Testamentos, de tal modo dispôs sabiamente, que o Novo estivesse latente no Antigo e o Antigo se tornasse claro no Novo” (DV 16).
Estes critérios internos, porém, não bastam para canonizar um livro como bíblico. São realmente muito subjetivos. Na realidade, o único critério realmente objetivo e capaz de conferir canonicidade a um livro sacro, é a Revelação feita pelo Espírito Santo à Igreja e transmitida pela Tradição apostólica.
Acrescentamos todavia, alguns sinais externos.

Critérios externos

1. Apostolicidade, em sentido amplo
2. Leitura pública e oficial pela maioria das igrejas
3. Tradição oral sobre os livros sacros
4. Não contradição com a Regula Fidei, transmitida na catequese batismal.
5. Veneração pelos livros sacros tais e tais.
A Igreja, desde o primeiro dia de sua existência, possuía o Antigo Testamento como Escrituras inspiradas. Contudo, para a Igreja primitiva, este Antigo Testamento era, em seu sentido mais profundo, profecia do Cristo - a autoridade última era o próprio Cristo. Portanto, a Igreja primitiva tinha três autoridades: o Antigo Testamento, o Senhor Jesus e os Apóstolos.
A autoridade última, decisiva, era Cristo, o Senhor, que falou imediatamente em suas palavras e obras e imediatamente através de suas testemunhas.
a) No começo, as palavras do Senhor e o relato de seus atos eram repetidos e relatados oralmente. Mas logo eles começaram a ser escritos. Mas, depois que pregaram o evangelho, decorrido algum tempo, os apóstolos tiveram a necessidade de escrever a certas comunidades, como fez São Paulo em suas cartas. Alguns desses escritos eram trocados entre as igrejas e logo ganharam a mesma autoridade dos escritos do Antigo Testamento (Cf. 2Pd 3,15s).
b) Por volta do ano 125, havia dois grupos de escritos que possuíam a garantia apostólica e cuja autoridade era reconhecida por todas as comunidades que os possuíam: os evangelhos e as cartas de São Paulo. Contudo, não havia pronunciamento oficial e as coleções variavam de igreja para igreja. As palavras escritas do Senhor, os evangelhos, embora não sejam os escritos mais antigos do Novo Testamento, foram os primeiros a serem colocados em pé de igualdade com o Antigo Testamento e reconhecidos como canônicos.
Pelo ano 140 já se conhecem os quatro Evangelhos. Justino mártir é o primeiro a falar em “Evangelho” (ca. 150), referindo-se não à Boa Nova, mas aos quatro evangelistas. Dele mesmo também se sabe que em Roma os Evangelhos eram lidos ao lado dos Profetas. A partir da segunda metade do séc. II os Evangelhos passam por Escritura Sagrada na Igreja Universal, sendo citados ao lado do AT e lidos na liturgia.
Por volta do ano 140, Pápias, bispo de Hierápolis, na Frígia, reconhecia os Evangelhos de Marcos e Mateus. As grandes igrejas possuíam um livro ou grupo de livros que eram comumente conhecidos como “Evangelho” e aos quais se fazia referência como a um documento que tinha autoridade e era universalmente conhecido. Também é do fim do século I ou começo do século II, que as treze cartas de Paulo eram conhecidas na Grécia, Ásia Menor e Itália. Essa coleção se harmoniza com nosso Corpus Paulinum. Haviam variações na ordem das epístolas, mas o número de escritos permanecia o mesmo. Não há citação de Paulo que não seja tirada de uma das epístolas canônicas, embora seja certo que o Apóstolo escreveu outras cartas.
c) Temos poucos relatos de outros escritos apostólicos na primeira metade do século II. Clemente conhecia Hebreus; Policarpo conhecia 1Pd e 1Jo; Papias conhecia 1Pd, 1Jo e Apocalipse. Na segunda metade do século, Atos, Apocalipse e, pelo menos, 1Jo e 1Pd eram considerados canônicos; eles tomaram o seu lugar ao lado dos evangelhos e das epístolas paulinas.
No Ocidente: (Roma e o resto da Europa), o Cânon Muratoriano é o testemunho mais antigo sobre os esforços empenhados em reunir os livros sagrados aptos para a leitura na liturgia e considerados fontes de pregação apostólica, para estabelecer elencos e para separá-los de outros escritos.
1. A invasão dos livros apócrifos. Nestes primeiros séculos, faltando um consenso unânime do magistério eclesiástico, diversas comunidades admitiram livros apócrifos, nascidos em ambientes pios ou heréticos, fora da tradição apostólica.
2. A heresia de Marcião, herege romano, cerca de 150. O filósofo dualista Marcião nega a origem divina do AT e rejeita tudo o que no NT possua relação com o AT, separando-os definitivamente. O canonzinho de Marcião consistia apenas em um Lucas mutilado e dez Paulos (excluídas as Cartas Pastorais e Hebreus).
3. A pululação dos escritos gnósticos. O gnosticismo, difundido nos três primeiros séculos de nossa era, supõe um dualismo ontológico entre bem (Deus, o divino) e mal (mundo material, criado pelo demiurgo). O homem, caído neste mundo e prisioneiro de seu corpo, será libertado e salvo mediante o conhecimento (gnose). Isto é possível porque o homem possui uma chispa divina, a ser libertada em etapas sucessivas, mediante o conhecimento arcano. Sabemos quanta pesticida custou a praga do gnosticismo para ser estirpada do terreno bíblico (HARRINGTON, 85).
4. A distância entre as várias Igrejas. Considerem-se as dificuldades de comunicação entre Igrejas de Jerusalém, Síria, Alexandria, Roma e outras.
Por isso as comunidades sentiram necessidade de defender o patrimônio verdadeiramente apostólico, tanto da asfixia por parte dos apócrifos, quanto do esvaziamento por parte de hereges. Surgiram pois listas dos livros considerados canônicos, por enquanto, particulares e semi-oficiais. Todavia, as autoridades das regiões eclesiásticas maiores aguardaram ainda por muito tempo a oportunidade de estabelecerem elencos oficiais que decidissem sobre a extensão do cânon bíblico.
O CÂNON DEFINITIVO
a) O Sínodo de Hipona (393): O primeiro catálogo oficial de um sínodo que enumera todos os livros do cânon atual é o do Sínodo de Hipona na África, do ano 393. Eis o texto:
“Além dos escritos canônicos, nada deve ser lido na Igreja sob o nome de Escritura Sagrada. Os escritos canônicos são estes: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Jesus Navé (Josué), Juizes, Rute, 4 Livros dos Reinados, 2 Livros dos Paralipômenos (= Crônicas), Jó, Saltério de Davi, 5 Livros de Salomão, (isto é, atribuídos a Salomão: Provérbios, Sabedoria, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Eclesiástico), 12 Livros proféticos (= Profetas Menores), Isaías, Jeremias (com Lamentações e Baruc), Daniel, Ezequiel, Tobias, Judite, Ester, 2 Livros de Esdras (= Esdras e Neemias), 2 Livros dos Macabeus. Do Novo Testamento: 4 Livros dos Evangelhos, Atos dos Apóstolos, 13 cartas do Apóstolo Paulo, 1 carta do mesmo aos Hebreus (Hb) separada do Corpus Paulinum, 2 de Pedro e 3 de João, 1 de Tiago, 1 de Judas, o Apocalipse de João. (Enchiridion Biblicum [EB] 16 e 17).
b) O Concílio de Trento: A discussão foi renovada por Martinho Lutero que, embora traduzisse os livros deuterocanônicos, os colocou no fim da Bíblia, tachando-os de apócrifos e “não pertencentes à Escritura Sagrada, mas úteis de serem lidos”. Por isso, o Concílio de Trento, viu-se obrigado a decidir a questão definitivamente para toda a Igreja (IV Sessão, 8/4/1546).
CONCLUSÃO
Um dos resultados da História do Cânon é demonstrar como é falso opor a Escritura à Tradição, ou pleitear o princípio da “sola scriptura” (só a Bíblia). Cada livro em particular tem a sua origem no seio do povo eleito do Antigo e do Novo Testamento, refletindo a Tradição sagrada do povo de Deus.
Nem Cristo nem os Apóstolos deixaram à Igreja um cânon delimitado e obrigatório. Foi depois de hesitações seculares e muitos debates entre províncias eclesiásticas e os teólogos que a Igreja, sob a assistência do Espírito Santo, decidiu quais livros serviriam de fontes de revelação de ambos os Testamentos. De modo que o cânon oficial não é outra coisa senão o reflexo de uma tradição secular.
Daí não segue, porém, que a Bíblia e Tradição possam ser identificadas uma com a outra. A pregação da Igreja deverá transmitir as promessas divinas dirigidas a Israel, o Evangelho de Jesus e a fé pascal e pentecostal de que Jesus é o Messias e o Senhor, até o dia de sua volta. Para poder transmitir a mensagem, Deus entregou à Igreja os livros sacros, como primeiros testemunhos da revelação, a par de tudo que os pais tinham recebido, aquilo que “ouviram e viram”.
Os livros do Antigo e do Novo Testamento são o patrimônio valioso deixado como herança pelas primeiras testemunhas. Considerando-os como documentos oficiais da revelação não quer dizer que a Igreja já não tenha mais mensagem própria para nós - ela possui o Espírito Santo da Verdade que introduz em toda a Verdade (Jo 14,17; 15,26; 16,13) - mas que ela se controla e orienta constantemente pelas palavras daquelas testemunhas inspiradas.

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